GRANDE PRÉMIO DE TEATRO PORTUGUÊS 2001

Rastos, de António Ferreira

Rastos, de António Ferreira

O ponto de partida da minha peça Rastos é circunstancial - durante meses a fio vi jovens drogados que pernoitavam numa casa que veio a ser demolida, às Amoreiras. Deixei-os entregues às suas verdades e mentiras, segui-os de longe, mas não lhes falei nunca. Que poderia eu dizer-lhes? Que poderiam eles contar-me que eu não soubesse já?

Acreditei sempre, ao escrever a peça que me ditou o silêncio da mente, que era preciso encarar de frente a sujidade do real, que desapareceu das letras portuguesas com a saída de cena da geração neorealista, esquivando uma visão miserabilista pela via da subjetividade do jogo (a disputa territorial entre Luís e Pedro e a partilha do passado - essa figura de geometria variável – entre Laura e João).

Reencontro naquilo que escrevi (rastos, vestígios de um outro viver) a visão sombria do mundo que percorre a minha poesia (O Comboio de Lúcifer e Lábios de Cinza), até ao ponto em que, citando Antero, “é tudo em torno a mim dúvida e luto”. E não poderiam ser estas, palavras dos jovens drogados que vi meses a fio?

FERREIRA, António “Rastos” in Rastos (Programa). Lisboa: Teatro Aberto, 2002.

Sem Abrigo, de Paulo Filipe

O teatro português faz 500 anos – afinal, o teatro não é assim tão efémero. Na bonita e infinita passagem de testemunho que caracteriza a estafeta (a estafa) teatral, dedicámos dois breves meses a um novo texto, novo autor, surgido do esforço persistente do Novo Grupo para renovar a dramaturgia portuguesa. Dois meses de entrega, de improvisações, de descoberta (no texto e nos actores) das interessantes personagens, de montagem e remontagem quase até ao último momento. De interação com a música, ali tão ao lado e tão no centro – privilegio sempre a música nos meus trabalhos, escolhê-la ou inventá-la ajuda-me a encontrar o tom justo; assim, este espectáculo é também um concerto, em que um músico improvisa com múltiplos instrumentos sobre a partitura destas personagens, sobre os seus movimentos e falas. E de interacção com o espaço, por definição mais visível, menos imaterial – mas não menos misterioso.

A peça é uma elegia, quase um elogio ao amor desgraçado, destronado, desviado, despido, entre Laura e João. Querem viver e não podem. Nem sequer conseguem ajudar-se um ao outro. Só têm passado, um presente adiado e escasso, nenhum futuro assumido. Já não se reconhecem, quando se olham ao espelho. Já não têm espelho. É também a história de Luís, filho da rua, ex-gigolo, lobo solitário que controla o precário prédio e os deixou lá viver. As vidas deles cruzam-se ainda com as novidades de Pedro, o vizinho mais inocente que Luís faz entrar na casa: os dois serão o contraponto irónico, sarcástico, problemático, à tragédia que se avizinha.

Excerto de FILIPE, Paulo “Sem Abrigo” in Rastos (Programa). Lisboa: Teatro Aberto, 2002.