Grande Prémio de Teatro Português 1997

Às Vezes Neva em Abril, de João Santos Lopes

A peça Às Vezes Neva em Abril vista pelo júri que a premiou

Não faltam, na ficção novelesca, as obras alusivas à guerra colonial, aos seus traumas e sequelas (Lobo Antunes, João de Melo, José Manuel Mendes, para só citar alguns), mas o mesmo já não poderá dizer-se em relação ao teatro. Se exceptuarmos o Jeep em Segunda Mão, de Fernando Dacosta, e o Sentido da Epopeia, de Mário de Carvalho (que o “Bando” levou à cena sob o título de Estilhaços), o tema – tão prenhe de virtualidades dramatúrgicas – parece ter deixado indiferentes os nossos autores.

Mas eis que um jovem autor ousou abordá-lo nesta que julgo ser a sua primeira peça, logo distinguida com o Grande Prémio de Teatro Português instituído pela Sociedade Portuguesa de Autores em colaboração com o Novo Grupo de Teatro. Às Vezes Neva em Abril é um texto duro, violento, incómodo (e acaso não será a incomodidade do tema que tem retraído os nossos dramaturgos, apesar de haverem decorrido mais de vinte anos sobre o fim do colonialismo?) – e o autor não recuou diante de nenhum obstáculo, quer ao nível das situações e do desenho das personagens, quer da linguagem através da qual aquelas se constroem e estas se definem, a tal ponto que pode quase afirmar-se ser ela o protagonista do drama.

Mais, ou menos, do que uma narrativa, o que nos é proposto (mostrado) é um documentário: documentário de um segmento da nossa realidade circundante que dói como um espinho cravado na sociedade portuguesa de após-Abril. Quase a terminar a acção, uma das personagens pergunta ansiosamente, raivosamente, “quando é que este ódio todo vai acabar”.

O autor não responde. Somos nós quem tem de dar a resposta.

REBELLO, Luiz Francisco “Às Vezes Neva em Abril” in Às Vezes Neva em Abril (Programa). Lisboa: Teatro Aberto, 1998.

Logo aquando da primeira leitura que efectuei de Às Vezes Neva em Abril, o que mais me impressionou, pela positiva, foi a existência, no texto, da chamada carpintaria teatral, bem como a do bom desenho das personagens, todas elas patenteando identidade própria. Leituras posteriores, já então sabendo quem era o autor, não modificaram a minha primeira impressão-opinião.

Em Às Vezes Neva em Abril, de João Santos Lopes, outras notas positivas comparecem: não se discute o sexo dos anjos, antes se aborda temática bem real, pertinente e inquietante, a da violência juvenil entrelaçada com a do racismo, e não me admiraria se o facto do autor ser sociólogo tivesse tido influência na escolha e na análise do tema “sub judice”. Outro ponto: Às Vezes Neva em Abril não é “pastiche” de certas obras estrangeiras – algumas já representadas entre nós – facilmente enumeráveis, também elas preocupadas com o mesmo fenómeno social. E, aqui, João Santos Lopes concede, à sua peça, um sublinhado de importância, que a torna bem especificamente lusa: adiciona, ao binómio violência juvenil-racismo, certo tipo de reacções, inaceitáveis e condenáveis, à descolonização que se seguiu ao 25 de Abril de 1974.

Ao que sei, Às Vezes Neva em Abril corresponde ao primeiro texto teatral escrito por João Santos Lopes. O facto de, logo à partida, o mesmo ter sido premiado, traduzido para outras línguas e representado, determina, quanto a mim, uma responsabilidade inelutável: João Santos Lopes fica, desde já, com a “obrigação” de escrever mais Teatro e sempre bom Teatro.

Para mim, como Homem de Teatro que sou e também como mero espectador potencial, resta-me, agora, a vivência futura desse eterno mistério que é o de participar ou não do que me for enviado do espaço cénico onde a obra se concretiza… todavia e, felizmente, nunca em definitivo.

MIDÕES, Fernando “Inquietante” in Às Vezes Neva em Abril (Programa). Lisboa: Teatro Aberto, 1998.

Com o concurso para o Grande Prémio de Teatro Português, o Novo Grupo de Teatro e a Sociedade Portuguesa de Autores pretendem incentivar e divulgar a dramaturgia portuguesa em diversas vertentes. Para além do valor monetário, atribuído ao autor da peça vencedora, o prémio inclui a representação da peça no Teatro Aberto, a edição na colecção de teatro das Publicações Dom Quixote, a tradução para três línguas (inglês, alemão e espanhol) e a divulgação junto de editoras e companhias de teatro estrangeiras, especialmente interessadas na apresentação de textos de dramaturgia contemporânea.

O júri que em 1997 distinguiu Às Vezes Neva em Abril de João Santos Lopes decidiu juntar à responsabilidade pela escolha da peça a participação no processo da sua estreia absoluta. Foi assim que, na última reunião, ficou acordado que o júri iria assistir a alguns ensaios, para emitir a sua opinião sobre a leitura cénica da peça, e escreveria um texto para o programa do espectáculo.

Depois de ter sido um dos seis elementos do júri que leu e escolheu a peça, acabei por me tornar também responsável por essa outra leitura, a da encenação, que torna o texto vivo ao encaminhá-lo para a finalidade com que todos os textos de teatro são escritos – o palco. Agora que o espectáculo está parcialmente acabado (e digo parcialmente porque nenhum texto de teatro chega a estar acabado), lembro-me da primeira impressão que o texto me causou quando o li como júri: ao princípio, a peça cativou-me pela secura do diálogo e pela coragem com que estava escrita, mas depois comecei a achá-la muito violenta e a ter dúvidas se gostaria de a ver no palco do Teatro Aberto. Quase desejei, a meio da leitura, que o autor, como muitos outros, escorregasse e não conseguisse levar a sua ideia de uma forma coerente e dramaturgicamente correcta até ao fim. Foi com espanto que verifiquei que o autor era terrivelmente consequente e conseguia acabar a peça com a mesma promessa de caos com que começara. Era realmente uma peça brutal, sem esperança, incómoda, mas com muito teatro, arrojo e desafio dentro dela.

Excerto de LOURENÇO, João “Às vezes a liberdade também se transforma num fardo trágico” in Às Vezes Neva em Abril (Programa). Lisboa: Teatro Aberto, 1998.